Política e Prazeres

Já que o poder é afrodisíaco.

segunda-feira, março 19, 2007

Preconceito e complexo de inferioridade

Moro em Brasília e recebi a visita da senhora que ajudou a me criar, Maria do Céu. Uma segunda mãe. Foi a sua primeira viagem de avião. Enxergou Brasília com encantamento, tudo causava nela uma expressão de espanto e novidade. Através de seus olhares de surpresa, disse o mesmo que Le Corbusier afirmara da Capital do Brasil: “em Brasília, tudo é invenção”.

No entanto, nem tudo é bonito no planalto central. Aqui existem as diferenças socioeconômicas de qualquer outro lugar do país. E o pior, muito preconceito. O espaço concebido por Lúcio Costa para agregar pessoas, também segrega. Maria do Céu é viciada em cigarro e, após as refeições descia para a área comum do condomínio em que eu moro para fumar. Já havia visto no hall da escada uns restos de cigarro, muito antes da chegada daquela pessoa humilde, mas respeitadora das regras da boa convivência.

Pois bem! Um porteiro do condomínio resolveu ligar para o meu apartamento para perguntar, em tom policialesco, qual a marca de cigarro que Maria do Céu fuma. A minha irmã achou estranha a pergunta, mas acabou respondendo. Um absurdo! Moro num condomínio de 96 apartamentos e resolveram cismar logo com Maria do Céu! Perguntei ao porteiro se ele recebera orientação de alguém para proceder daquela maneira. Sentiu-se humilhado desde aquele momento e me disse que era “homem o suficiente para tomar atitudes e responder por elas”. Vi então que iria passar por uma via crucis pontuada de imbecilidades. Não existe nada tão idiota do que afirmar “sou homem suficiente para isso ou aquilo”. Deu vontade de perguntar: “você é homem suficiente para parir?”. Mas deixei pra lá. Informei-o que ele estava errado e tinha invadido a minha privacidade e prejulgado a minha visita. Aí, veio a pérola: afirmou que havia também perguntado em outro apartamento a marca do cigarro que a empregada fumava. “Mas amigo, primeiro que você questionou uma visita minha, uma mãe de criação; e segundo, mesmo que fosse uma empregada, você não tem o direito de fazer isso”. Pronto, fudeu! Ao dizer isso, parece que num piscar de olhos passei de vítima a algoz, de ofendido a ofensor, de agredido a agressor. Disse-me o rapaz, do alto de sua sapiência, que ele não era meu amigo (ainda bem!) e que eu deveria zelar pela área comum do condomínio. A partir daí, o nosso diálogo se transformou num repertório canhestro de incompreensão e complexo de inferioridade. O funcionário acusava-me a toda hora de tentar humilha-lo, de falar alto (eu falo alto mesmo), de colocar o dedo em sua cara (bem, falo gesticulando, mas sei bem o que é colocar o dedo na cara de outra pessoa e não estava fazendo isso); ou seja, restou-me apenas apelar para as minhas pernas e me deslocar daquele local para o meu apartamento, deixando o meu interlocutor falando sozinho. Devo ter virado um monstro na mente revolta do porteiro.

O interessante é que se alguém ligasse para a polícia denunciando a prática de racismo, eu quem iria ser preso, certamente. Prefiro, entretanto, guardar, da vinda de Maria do Céu à Brasília, o olhar de uma brasileira comum diante da invenção e da genialidade de um artista. Ao ouvir uma moça com ar intelectual afirmar que não enxergava nada demais no novo museu projetado por Niemeyer, tratou logo de concluir que nem todo mundo consegue entender uma obra de arte. E depois, acendeu o seu cigarro e deu algumas baforadas na cara do preconceito.

Carlos Emerenciano

1 Comments:

  • At 20 março, 2007 20:19, Anonymous Anônimo said…

    Caro amigo Carlinhos.

    Como de hábito acessei muito alegremente, seu blog, que por sinal, sempre me faz refletir sobre alguns assuntos abordados e me deparo com a sua nota "Preconceito e complexo de inferioridade". Esse "tema" naturalmente já me chama atenção, mas esse, particularmente, me fez sentir bastante mal, principalmente por se tratar de uma pessoa que conheço a longas datas. Sei muito bem do caráter de Maria do Céu e do afeto e idolatria a você. Imagino como você deve estar se sentindo com tudo isso.

    Às vezes fico pensando na imbecilidade humana e como ela é capaz de atos idiotas e destemperados. Esse cidadão, "seu" porteiro, representa essa linha de pessoas que, independentemente, do seu "status" e momento histórico, tem atitudes preconceituosas e racistas com outros.

    Será que não seria o momento de você tomar uma atitude mais enérgica com esse cidadão? Pelo que parece ele continuará a agir dessa maneira com outras "Marias", "Franciscas", "Josés".

    Que atitudes como essa não se repitam!!!

    SALVE MARIA DO CÉU!!

     

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