Política e Prazeres

Já que o poder é afrodisíaco.

domingo, setembro 30, 2007

A noite do tempo

Claúdio Emerenciano - Professor da UFRN

O homem, em todas as formas de criação artística e literária, ao longo de sua existência, associa as fases do dia e da noite com as circunstâncias que o cercam. Um dos mais belos e deslumbrantes livros da humanidade, "As mil e uma noites", revela coragem, argúcia e criatividade de uma bela mulher. Seu nome: Sheherazade. Ela escapa da sentença de morte, decretada por seu marido, um sultão. Seu ardil: seduzi-lo com suas estórias intermináveis, continuamente narradas madrugadas adentro. Que se sucedem no transcurso desse tempo, suscitando-lhe amor, fascínio e paixão. Shakespeare, em “Romeu e Julieta", genialmente vincula o amor eterno desses personagens ao raiar do dia, inebriado por um hálito suave de ventos primaveris. Enquanto cânticos da cotovia os induziam a identificar o sentido universal da vida. A placidez dos campos e os raios de luz que dissipavam a névoa; o som do atrito das águas dos rios com as rochas que os margeavam; o aroma exalado por flores que desabrochavam; beija-flores que pareciam sussurrar ao extrair néctar das plantas. Tudo compõe uma atmosfera romântica, amargamente desfeita ante a fatalidade de uma tragédia imprevisível. O amor sublime do casal, que imobiliza o ódio de suas famílias.

Na juventude, compartilhei com Valério Mesquita a leitura de toda a obra shakespeariana. É impossível superar a genialidade de "Júlio César". A ambiência da madrugada da conspiração, com raios e trovões tenebrosos, trevas que se alternavam com ventos sinistros, que assobiavam como presságio do assassinato da manhã seguinte. Os pesadelos sucessivos de Calpúrnia, a mulher de César, que o viam trespassado por punhais e sua toga consular encharcada de sangue. As motivações dos conspiradores e suas variáveis psicológicas: da ambição e inveja de Cássio ao compromisso republicano de Brutus. Por fim, o primeiro tratado de comunicação social do mundo, exposto através dos discursos fúnebres de Brutus e Marco Antonio. A manipulação da “opinião pública", através da conjugação de emoções e dádivas financeiras constantes de um simulacro do testamento de César, maquiavélica e improvisadamente urdido por Marco Antonio. A obra do gênio desvendou todos os sentimentos e emoções: nobres e subalternos. Ninguém mergulhou tão profunda e intensamente na alma humana.

A noite do tempo é um instante estático, imóvel, sem movimento. Fonte de perplexidade, angústia, incerteza ou ansiedade na História. Momento em que a condição humana parece abdicar da esperança, dos sonhos e da crença em si mesma. Manifesta-se aqui ou ali. Ou em todos os lugares, invadindo e alcançando a "aldeia global". Quando a França caiu, ocupada pelos nazistas em 1940, André Maurois (Nobel da Literatura) escreveu "Tragédia na França". Empregou, pela primeira vez, a expressão, significando uma derrocada universal. Conferiu-lhe, pois, dimensão intransponível. Mas Winston Churchill, logo depois, em um dos seus memoráveis discursos, concitando seu povo à resistência, disse que "essa noite do tempo não persistirá, pois as trevas sempre sucumbem à luz". E ruíram, como todo mal. Foi-se...

Circunstâncias universais apontam, infelizmente, para uma parada do tempo. Uma noite que precisa ser atravessada, percorrida e esquecida. Contradições, perplexidades, absurdos, injustiças, impunidade, violência e ódio se generalizam. Mas assumem peculiaridades em alguns países. É o caso do Brasil. É tempo de despertar.

Fonte: http://tribunadonorte.com.br/coluna.php?id=2020&art=53639