Política e Prazeres

Já que o poder é afrodisíaco.

sábado, abril 28, 2007

As crianças de Dickens

Ivan Maciel de Andrade - advogado

Em meio à discussão sobre a redução da idade (de 18 para 16 anos ou, talvez, menos) para efeito da responsabilidade penal (considero preferível a idéia de submeter o menor a exame psiquiátrico para avaliar o seu grau de discernimento) - sinto-me emocionalmente impelido a relembrar as crianças dos romances de Charles Dickens. Crianças inicialmente amarguradas mas que conseguem ser felizes com o apoio de adultos de quem se tornam amigos para o resto da vida. Extraordinária a afeição que se forma entre crianças e adultos, que se protegem reciprocamente, tornam-se cúmplices, sentindo-se, uns e outros, marginalizados, inábeis, incapazes diante do mundo pragmático, cheio de maliciosas sutilezas, estranhamente complexo em que vivem.

Existem também nos livros de Dickens aqueles adultos enormes, assustadores, que ameaçam as crianças, por necessidade ou prazer de impressioná-las. Mas também esses adultos, aparentemente maus, quase sempre criminosos foragidos, revelam-se essencialmente bons, vítimas de intrigas, traições e trapaças promovidas por experimentados e hábeis espertalhões.

Quanta força vital se contém nos livros de Dickens. As “Grandes Esperanças”? Poderemos renová-las sempre, a qualquer momento, acompanhando as aventuras de um menino criado por uma tia exigente e pirracenta (mas que o amava, à sua maneira rígida e autoritária) e por um tio que, apesar de meio bronco, desajeitado, extremamente submisso e obediente à esposa, adorava o menino e lhe fazia, às escondidas, todas as vontades. Os livros de Dickens restauram o clima da infância, seus temores, suas alegrias, seus espantos, a confiança e a desconfiança que surgem nas relações com os adultos. Tudo ampliado pela hipersensibilidade da inexperiência que permite à imaginação as criações mais arbitrárias e simultaneamente as mais obsessivas: a interpenetração do real e do onírico, do vivido e do sonhado, daquilo que se sente e do que é apenas imaginado.

Na criança estão a criatura e o Criador; o fruto e a semente; o mistério do início e a razão de ser biológica da espécie; a renovação de todos os questionamentos e a avaliação de todas as respostas; a busca e a certeza; a fragilidade e o prodígio da condição humana. Nós todos renascemos a cada nova experiência, a cada novo momento da vida, a cada nova motivação existencial. Foi esse o ensinamento de Cristo: a ressurreição. É preciso renascer. Renascer para a fé; renascer para a esperança; renascer para o amor; renascer para a vida. Nada nos impede de chegar à mensagem de Cristo, nem os vendilhões do templo, nem os “sepulcros caiados”, nem os fariseus, nem os centuriões de César, nem a falsa idolatria de Judas. Sua mensagem está acima de credos, igrejas, liturgias, cânones, dogmas, apostolados, indulgências, fanatismos, do poder e da arrogância dos que se dizem seus representantes ou discípulos e transformam a fé em negócio rentável ou instrumento de ascensão pessoal. Cristo foi um revolucionário, na dimensão humana e social. Ele veio revolucionar valores que orientam a vida interior e a vida relacional dos homens.

Quando debatem sobre a sorte das crianças, lembro-me das palavras de advertência proferidas por Cristo para quem vier a ofender alguma delas. “Ai de quem”, diz Ele. E quem pagará, em nosso mundo declaradamente cristão, pela fome, pela miséria, pelo abandono, pela morte, pelo aviltamento de tantas e tantas crianças que mal sabemos que existem e pelas quais nada, nada fazemos ou pretendemos fazer? A pergunta talvez devesse ser outra: quando nos tornaremos suficientemente cristãos para termos vergonha de nós mesmos? A santa vergonha da autocrítica. Com isso, não proponho nenhuma atitude complacente com relação aos criminosos infanto-juvenis. A violência precisa ser combatida duramente. Mas precisamos crescer como país, para oferecer mais educação, mais emprego, mais oportunidades de vida aos que, hoje, desejamos - com toda razão - punir da forma mais rigorosa e implacável. As crianças de Dickens são todas as crianças.

Fonte: http://tribunadonorte.com.br/coluna.php?id=2004&art=40863